As discussões sobre os desafios e oportunidades do setor de saneamento vêm ocupando os holofotes e debates de infraestrutura, fruto do processo de aprovação da Lei no 14.026/20, conhecida como novo marco Legal do Saneamento (novo marco). Apesar da intensificação deste debate, com a inclusão do tema nas principais pautas do mercado, o setor ainda possui um longo caminho a percorrer para consolidar sua agenda regulatória, o que pode ser facilmente compreendido, considerando a profusão de agências reguladoras e regulamentos atualmente existentes no Brasil.
Um tema que parece ser menos debatido, a despeito de sua relevância para a estabilidade dos projetos, diz respeito à governança interfederativa nos casos de prestação dos serviços de saneamento em região metropolitana, microrregião e aglomeração urbana. Este tema assume relevo ainda maior diante do incentivo que o novo marco conferiu à prestação regionalizada, com a instituição das unidades regionais e blocos de referência [1].
Características inerentes aos serviços de saneamento — tais como o compartilhamento das bacias hidrográficas, interdependência dos sistemas e inviabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços por parte dos municípios isoladamente — já haviam ensejado atuação integrada entre municípios e também destes com os Estados, por meio das diversas formas de prestação regionalizada. Contudo, o novo marco foi um passo além e elegeu a regionalização como um dos principais instrumentos de gestão para o alcance da universalização, ao condicionar a alocação de recursos públicos federais e o acesso a financiamentos com recursos da União à adesão pelos titulares dos serviços de saneamento à estrutura de governança correspondente [2], nos casos de unidade regional de saneamento básico, blocos de referência e gestão associada [3].
Assim, embora a adesão aos blocos regionais pelos titulares do serviço público não seja compulsória, ao contrário do que ocorre em regiões metropolitanas, pode-se dizer que há quase uma indução para que isso ocorra, diante do grande desincentivo financeiro para os municípios que por qualquer motivo deixem de integrá-los. Daí decorre o ponto de preocupação apontado pelo presente artigo: a ausência de parâmetros que regulem as condições de governança dos colegiados interfederativos.
As discussões acerca das regras de governança dos colegiados interfederativos, apesar de não serem novas, parecem não estar próximas de uma solução definitiva. Na emblemática decisão proferida pelo STF na ADI 1842 — que tratava da constitucionalidade da lei complementar que instituía a região metropolitana do Rio de Janeiro e a microrregião dos Lagos — esta questão foi abordada de forma superficial. O acórdão estabeleceu que a participação dos entes federados nas instâncias de governança não precisaria ser paritária, mas deveria ser estruturada de modo a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente [4].
O Estatuto da Metrópole (Lei no 13.089/15), que representou avanço sobre a matéria ao estabelecer princípios, diretrizes gerais e estrutura básica da governança interferderativa, também não fixou parâmetros para nortear as discussões acerca da composição e quóruns para deliberações dos entes integrantes dessa estrutura de governança. E tal lacuna tem dado ensejo a diversas discussões judiciais, a exemplo do que ocorreu nas ADIs 6573 e 6911.
Referidas ADIs questionam dispositivos da Lei Complementar nº 50/2019 do Estado de Alagoas [5], especialmente os artigos 8º e 14º que regulam, respectivamente, a composição e percentuais de participação das entidades federadas nas instâncias deliberativa e executiva da Região Metropolitana de Maceió (RMM), sob alegação de concentração de poder nas mãos do Estado de Alagoas. A composição da instância deliberativa da RMM é distribuída da seguinte forma: 40% para o Estado de Alagoas, 40% para o conjunto dos 13 municípios, 15% para a Assembleia Legislativa e 5% para a sociedade civil. Já a instância executiva é composta pelo Estado de Alagoas com 40% dos votos, pelo conjunto dos 13 municípios com 40% dos votos e pela Assembleia Legislativa com 20% dos votos [6].
Vale citar também a ADI 6339, por meio da qual são questionados dispositivos da Lei Complementar nº 48/19 do Estado da Bahia, que institui microrregiões de saneamento básico no estado. Alguns dos dispositivos questionados tratam justamente do percentual de participação atribuído ao Governo do Estado (50%), por entender que, por sua preponderância, este percentual de participação feriria a autonomia municipal — os outros 50% foram atribuídos ao conjunto de municípios.
As normas estaduais para criação dos blocos regionais também não são uniformes no endereçamento da governança interfederativa. Citamos, a título de exemplo, o Projeto de Lei nº 2.884/21 do Estado de Minas Gerais, que definiu de forma detalhada a composição e percentual de participação atribuível a cada um dos membros das estruturas de governança. A proposta contida no referido projeto de lei prevê que a instância colegiada deliberativa será composta pelos municípios, que deterão em conjunto 75% dos votos, cabendo ao Estado de Minas Gerais 15% dos votos e ao Comitê de Bacias Hidrográficas 10% dos votos, com as decisões deliberadas por maioria absoluta. Já a instância executiva, composta por representantes dos municípios, será exercida por meio de gestão associada, mediante consórcio ou convênio de cooperação, nos termos do artigo 241 da Constituição Federal.
A Lei nº 17.383/21 do Estado de São Paulo foi omissa neste aspecto, limitando-se a indicar as instâncias de governança que comporão sua estrutura básica, em linha com o Estatuto da Metrópole, e deixando as demais condições, incluindo composição e percentual de participação, para definição no âmbito das respectivas unidades regionais.
Em síntese, o esforço e os recursos dos investidores, sejam estes públicos ou privados, devem estar concentrados na melhoria da prestação dos serviços públicos e na ampliação da cobertura de água e esgoto para a sociedade, para que se alcance a universalização, e sem uma discussão séria que enderece as questões de governança interfederativa continuaremos imersos em batalhas judiciais, que demandam tempo e recursos a perder de vista, gerando insegurança para todos.
[1] Vide artigo3º, inciso VI, alíneas “b” e “c” da Lei 11.445/07, com as alterações promovidas pela Lei 14.026/20.
[2] A exemplo da Caixa Econômica Federal, um dos grandes financiadores do setor.
[3] Ver artigo 50, inciso VIII da Lei 11.445/07, com as alterações promovidas pela Lei 14.026/20.
[4]Destacamos trecho da ADI 1842/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno: “O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios.
Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto”
[5] A Lei Complementar dispõe sobre o sistema gestor metropolitano da Região Metropolitana de Maceió (RMM).
[6] No caso da ADI 6573 houve manifestação da Procuradoria Geral da República, em 25/02/21, opinando pela procedência parcial da ação por entender que “O peso decisório conjunto de treze Municípios juntos não pode ser menor do que o do estado-membro. Contudo, da maneira em que positivado na Lei Complementar 50/2019, o Estado de Alagoas tem predomínio absoluto sobre as decisões da região metropolitana.”