Por Joana Batista e Daniele Uchida (publicado em 18.09.2020 em www.jota.info)
Apesar das previsões contratuais de áleas extraordinárias e dos mecanismos de reequilíbrio, proposta do senador Anastasia tem o mérito de oferecer mais segurança jurídica em meio à Pandemia.
Se é verdade que a administração pública, assim como o empresariado, opera em ambiente de permanente incerteza, é preciso reconhecer que a Pandemia pelo Covid-19 agravou ainda mais os riscos e vulnerabilidades dos contratos administrativos e da prestação de serviços à população. Para dar apenas um exemplo e tomando por base as concessões de rodovias, uma breve análise dos dados coletados pela ABCR no mês de julho/20, mostrou que o fluxo de veículos nas rodovias concessionadas em todo Brasil sofreu forte impacto da situação de pandemia: “comparado ao mesmo período de 2019, o índice total caiu 18,7%. O fluxo pedagiado de veículos leves recuo 24,9%, enquanto o fluxo de pesados caiu 0,1%.”
Dado que esse novo normal não parece ter data para terminar, impõe-se a urgente necessidade de discussão sobre o tratamento a ser dado aos contratos com a administração pública para contrabalançar os efeitos nefastos da pandemia.
As concessões de serviços públicos demandam especial reflexão. Tratam-se de serviços essenciais e que, portanto, não podem ser interrompidos. Ocorre que, ao contrário da receita das concessionárias, que é diretamente impactada pela queda do fluxo de tráfego decorrente do isolamento imposto pela Pandemia, as obrigações contratuais das concessionárias, tais como pagamento de outorgas, investimentos, etc, quase sempre independem do volume de tráfego.
Reconhecendo a excepcionalidade do momento e a possibilidade do arcabouço jurídico atual não contemplar com segurança jurídica a amplitude e a necessária urgência na implantação de medidas necessárias para um momento tão desafiador, o Senador Antônio Anastasia apresentou o PL 2139/20 com a finalidade de regular os efeitos negativos da Pandemia sobre os contratos celebrados pela Administração Pública de todas as esferas, inclusive pelas estatais, incluindo os contratos de concessão.
Aqui, vale o alerta de que não se desconhece que a concretização de eventos que apontam para álea extraordinária dos contratos, já sinalizaria, com ou sem aprovação do PL 2139/20, para o reequilíbrio dos contratos em curso, desde que impactados, seja pela aplicação de suas cláusulas, seja das normas gerais de direito. Contudo, este fato não afasta, em nossa opinião, o mérito e a necessidade de debate e aprovação do Projeto.
Feita a ressalva, parece claro que com a finalidade de instituir medidas para assegurar a continuidade da execução contratual e “promover a solução menos nociva para os interesses público e privado”, conforme previsão de seu art. 2 º, §1º, o PL 2139/20 encarta um conjunto de regras para que os pedidos de reequilíbrio, recomposição e revisão sejam analisados com celeridade, segurança jurídica tanto para quem os avalia, quanto para quem os faz. — e mais, com soluções adequadas, em um esforço de evitar a judicialização desnecessária do tema, em prejuízo de todos e sobrecarga do Judiciário.
O projeto prevê a possibilidade da Administração rever obrigações contratuais e adotar qualquer outra medida que se mostre necessária e adequada para conter os impactos da pandemia ou assegurar a continuidade da prestação objeto dos contratos, antes mesmo da conclusão do processo de reequilíbrio contratual, a ser realizado ao término do período de calamidade pública. Dentre as medidas possíveis estão a suspensão da exigibilidade de obrigações do contratado, com a consequente revisão de cronogramas para entrega de produtos, de serviços ou para a realização de investimentos; alteração das especificações e quantidades do objeto contratual e a suspensão da cobrança de sanções. A possibilidade de adoção de medidas imediatas antes da conclusão do reequilíbrio contratual é positiva e endereça a urgência e celeridade que o cenário requer, garantindo eficácia em sua aplicação.
O PL 2139/20 também prevê a possibilidade de postergação do pagamento de encargos devidos ao Poder Concedente com efeito caixa imediato para as concessionárias. Assim, valores como outorga fixa ou variável, receitas alternativas, complementares, acessórias ou de projetos associados, encargos de fiscalização ou congêneres, previstos nos respectivos contratos, além de encargos setoriais, poderão ser suspensos durante o período de calamidade pública e utilizados para cobrir as despesas incorridas na continuidade da prestação do objeto contratual.
Durante a vigência do regime instituído pelo PL 2139/20, os limites para acréscimos ou supressões contratuais estabelecidos pelo §1º do art. 65 da Lei nº 8.666/93 poderão ser ultrapassados. Para isso, será necessário que as partes cheguem a um acordo quanto ao montante de acréscimo ou de redução.
Outra inovação trazida pelo PL 2139/20 é a possibilidade das partes estabelecerem nova equação econômico-financeira para o contrato, inclusive com revisão da matriz de riscos originalmente prevista para refletir o novo desenho de obrigações pactuadas, de modo a proporcionar a continuidade saudável do contrato. Esta revisão, segundo a proposta, se dará quando da análise do pedido de recomposição a ser feito após o encerramento do período de calamidade pública.
Para as concessionárias e para a sociedade, tal mudança seria bem-vinda. Desde que bem implementado, tal dispositivo pode evitar que as dificuldades financeiras advindas da queda das receitas venham a interromper o funcionamento dos serviços – situação em que o maior prejudicado seria o cidadão.
Ainda que o PL 2139/20 possa e deva ser amplamente discutido com a sociedade, e certamente tenha espaço para aperfeiçoamentos, entendemos que as medidas propostas são úteis e serão de valiosa aplicabilidade para solucionar com celeridade as questões e impactos da Pandemia sobre os contratos públicos em vigor, notadamente os contratos de concessão, trazendo orientações fundamentais para nortear a ação dos órgãos reguladores de cada setor. Em assuntos complexos e tão fundamentais como as concessões de serviços públicos, quanto mais consensuais e céleres forem as soluções adotadas, maiores serão os benefícios à toda a sociedade.
- Sócia de Batista, Uchida, Uehbe Advogados, é Advogada, Mestra em Direito Administrativo pela PUC-SP, Professora de Direito Administrativo, Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, onde preside a Comissão de Integridade e Compliance, e associada fundadora do IDASAN.
- Sócia de Batista, Uchida, Uehbe Advogados, é advogada especializada em Infraestrutura.
- “A Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias – ABCR representa o setor de concessões de rodovias, que é formado por 48 empresas privadas e associadas, que atuam em 12 estados do País (Bahia, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo) e Distrito Federal. São 16 concessionárias federais, 30 estaduais e 1 municipal.” Segundo o próprio site da ABCR, “o índice mede o movimento nas estradas sob concessão e é construído pela Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias – ABCR juntamente com a Tendências Consultoria Integrada.” (https://abcr.org.br/indice/indice-abcr-do-mes, acesso em 06.09.2020).
- As reflexões para publicação deste artigo se originaram da participação no Webinar promovido pelo IBDA em conjunto com a AASP no último dia 04.09 intitulado “Projeto de Lei nº 2.139, de 2020 – Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas contratuais da Administração Pública, no período da emergência de saúde pública de importância internacional, decorrente do coronavírus (Covid-19)”, ao lado de renomados Professores de Direito Administrativo.
- A exemplo do que também fez quanto às relações jurídicas de Direito Privado com a autoria do PL 1179/20, que deu origem à Lei 14.010/20.
- Não se desmerece com isso a LINDB (Lei 13.655/2018), que confere ao administrador uma série de parâmetros como forma de garantir segurança jurídica e eficiência na aplicação das normas jurídicas. A LINDB nos parece um diploma de suma importância para tratar dos efeitos jurídicos decorrentes da situação sui generis em que nos encontramos, mas em nossa opinião a sua aplicação fortalece as regras previstas no PL 2139/2020.
Link da publicação original: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/pl-2139-20-reflexos-contratos-concessao-18092020