Por Diogo Uehbe – Sócio de Batista, Uchida, Uehbe, Advogados e Mestrando em Direito Administrativo pela PUC/SP
Na edição extra do DOU de ontem, dia 30/08, foi publicada a Medida Provisória nº 1.065 (MP 1065), que apresenta o tão aguardado novo marco legal para o setor ferroviário. Curiosamente, também na data de ontem, o Senador Jean Paul Prates, atual relator do Projeto de Lei do Senado nº 261 (PLS 261/2018), apresentou novo parecer e nova versão do texto do referido projeto de lei que, de uma forma geral, aborda as mesmas matérias tratadas nas MP 1065.
O conteúdo de ambos envolve regramento de fundamental importância para o setor, cuja evidente urgência não foi suficiente para viabilizar a célere discussão e aprovação do PLS 261. Acredita-se que agora, com a edição da MP 1065, o tema ganhe o devido destaque e atenção, rumo a uma definição.
A MP 1065 traz alguns pontos interessantes, para além dos aspectos já destacados e abordados em artigo de nossa autoria[1], a respeito do PLS 261. Entre eles, destacamos algumas disposições e inovações sobre (i) o Programa de Autorizações Ferroviárias; (ii) o regramento das autorizações para a exploração de ferrovias sob regime de direito privado; (iii) a cisão e a adaptação de trechos concedidos para adoção do modelo de autorização; e (iv) as ferrovias registradas, inteiramente privadas.
A seguir, traçamos alguns breves comentários sobre esses itens.
PROGRAMA DE AUTORIZAÇÕES FERROVIÁRIAS
A MP 1065 estabelece um Programa de Autorizações Ferroviárias, que preconiza, dentre outros aspectos, a cooperação entre os diversos entes federativos e a interlocução com o setor produtivo (art. 42, §1ª, I e II), bem como a estabilidade das políticas públicas do setor ferroviário e a segurança jurídica (art. 42, §2º, I e III).
Entre os objetivos declarados do programa, destacam-se a ampliação da competição intra e intermodal e a busca de sinergia entre o interesse público inerente ao segmento ferroviário e o setor privado, visando aumentar a atratividade dos projetos e reduzir riscos (art. 42, §3º, V e VI).
AUTORIZAÇÕES
Prazo: 99 (noventa e nove) anos, prorrogáveis por períodos iguais e sucessivos, desde que a infraestrutura esteja em operação e haja manifestação prévia e expressa de interesse do autorizatário (art. 6º, §1º, I e II).
Critérios para apreciação do requerimento de autorização: ao apreciar o requerimento de autorização, o Ministério da Infraestrutura analisará a convergência do projeto com a política nacional de transporte ferroviário (art. 7º, §2º, I, §5º, II) e, com o suporte da ANTT, avaliará a compatibilidade locacional do projeto com outras infraestruturas implantadas ou outorgadas (art. 7º, §3º).
Pela redação apresentada, verifica-se que haverá um razoável espaço de discricionariedade para apreciação do requerimento[2], com a consideração, pela ANTT, do impacto que a ferrovia a ser autorizada produzirá também em outros modais.
Cabimento do chamamento público: realizado a qualquer tempo, por iniciativa do Ministério da Infraestrutura, tendo por objeto a autorização de ferrovias não implantadas, sem operação, em processo de devolução ou desativação, outorgadas a empresas estatais (exceto as subconcedidas), além daquelas consideradas ociosas (art. 9º).
Pagamento de outorga e processo seletivo público: edital do chamamento público deve indicar contrapartida mínima, inclusive a possibilidade de pagamento de outorga (art. 10, III).
Havendo mais de um interessado, a ANTT disciplinará processo seletivo público (art. 11, II), que terá, como critério de julgamento, o maior lance (incluída a possibilidade de pagamento de outorga), observados, em qualquer hipótese, os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 11, parágrafo único).
Formas de extinção da autorização[3] – Cassação na hipótese de não obtenção de licenças: na MP 1065, a cassação é o instituto que consolida as hipóteses de extinção da autorização por faltas imputáveis ao autorizatário (art. 13, §3º). A ele, é acrescida a hipótese de extinção pela não obtenção de licenças em prazos determinados: prévia, no prazo de três anos; de instalação no prazo de 5 (cinco) anos; e de operação, no prazo de 10 (dez) anos (art. 13, §4º).
Tal disposição reforça ainda mais a importância que será dada ao cumprimento, pelo autorizatário, dos cronogramas pactuados, com vistas à efetiva implantação da ferrovia autorizada (art. 6º, §3º, art. 7º, §1º, d, art. 12, III).
CISÃO, ADAPTAÇÃO E REEQUILÍBRIO DE CONCESSÕES
Cisão de concessões e permissões: possibilidade de cisão de trechos que fazem parte concessões ou permissões, para que sejam outorgados posteriormente, sob o modelo de autorização, sendo vedada a participação do anterior concessionário/permissionário, resguardados os direitos destes com relação a eventuais ressarcimentos (art. 9º, §3º e §5º).
Adaptação de concessões para o modelo de autorização: possibilidade de adaptação do contrato de concessão, convertendo-o em autorização, por requerimento da concessionária, nos casos em que uma outra ferrovia autorizada entrar em operação, afetando o mercado competitivo.
Tal requerimento deverá ser submetido a uma ampla avaliação técnica, e a adaptação somente será deferida se não houver inadimplência por parte da concessionária requerente e se o futuro contrato de autorização assegurar a manutenção das obrigações financeiras e de investimentos já assumidas (art. 34, art. 35, IV).
Trata-se de regramento que tem o propósito de mitigar os impactos da assimetria regulatória inevitável entre os regimes de concessão e autorização, sem, no entanto, deixar de estimular um ambiente competitivo no setor[4].
Reequilíbrio como solução alternativa: a concessionária afetada pela operação de nova ferrovia autorizada poderá requerer, alternativamente, a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, que poderá se dar por redução do valor da outorga, aumento do teto tarifário, supressão das obrigações de investimentos e indenização (art. 35, I, II, III, IV e VI).
FERROVIAS REGISTRADAS
A MP 1065 apresenta, ainda, um modelo de ferrovias inteiramente privado, aplicável às ferrovias particulares localizadas exclusivamente em áreas privadas. Nessas hipóteses, exige-se tão somente o registro junto à ANTT, a qual exercerá as funções de regulação e fiscalização relativamente a questões de trânsito e segurança (art. 17, parágrafo único).
Nesse cenário, espera-se que a “coexistência” da MP 1065 e do PLS 261/2018 não transforme a esperada regulamentação do setor ferroviário em uma queda de braço entre Executivo e Legislativo, mas, sim, que proporcione o enriquecimento do debate, resultando em um marco legal de consenso, que melhor atenda ao interesse público.
[1] Disponível em: https://www.agenciainfra.com/blog/infradebate-ferrovias-privadas-o-que-esperar-do-novo-marco-regulatorio/
[2] O texto proposto no PLS 261/2018, conforme o mais recente parecer do Relator, parece ser mais restritivo nesse ponto (art. 22, §5º).
[3] O PLS 261/2018 prevê ainda a caducidade, o que, a nosso ver, prejudica a clareza do texto e das hipóteses reguladas, podendo gerar ambiguidades com relação à cassação. O PLS/2018 prevê ainda o decaimento, hipótese inexistente na MP 1065 – o que, em nosso entender, fortalece o modelo de autorização, garantindo-lhe maior estabilidade e segurança jurídica.
[4] O texto proposto no PLS 261/2018, conforme o mais recente parecer do Relator, estabelece direito de preferência do concessionário em obter autorizações para novos trechos localizados dentro da área de influência da sua concessão ferroviária preexistente (art. 3º, III, art. 63).