Por Joana Batista – Sócia de Batista, Uchida, Uehbe, Advogados, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, professora de Direito Administrativo, membro-fundadora do Idasan e presidente da Comissão de Integridade do IBDA.
É consenso que o investimento em infraestrutura contribui de forma determinante para a redução da pobreza e o crescimento econômico de qualquer país. Se, de um lado, sabemos que a formatação de bons projetos de infraestrutura é mandatória para atração de investimento privado, de outro sabemos também que o Estado brasileiro não detém os recursos humanos e materiais para executá-los de modo a suprir a grande necessidade do país, o que torna indispensável a participação da iniciativa privada também na modelagem dos projetos.
Para que um projeto seja sustentável, especialmente do ponto de vista do investidor privado, é preciso previsibilidade. Quem investe quer quantificar seus riscos, o que somente se faz possível num ambiente em que se possa prever minimamente o que acontecerá ao longo da relação contratual que, nos casos das concessões, pode durar algumas décadas.
Sem a pretensão de esgotar neste artigo todas as premissas estruturais para que tenhamos bons projetos de concessão e, por conseguinte, bons contratos e bons serviços oferecidos à população, levantamos alguns pontos que nos parecem essenciais para fortalecer a participação privada nos investimentos de médio e longo prazo no setor de infraestrutura com reflexos positivos para o ambiente de negócios.
1) Participação cada vez mais aberta e institucionalizada do público e do privado na elaboração e nas discussões dos projetos, a exemplo dos procedimentos de manifestação de interesse e outras formas de diálogo privado com a Administração Pública. É, também, o caso do diálogo competitivo, nova modalidade de licitação incluída pela Lei nº 14.133/21, e aplicável às concessões, por meio do qual se pretende identificar soluções inovadoras para as necessidades públicas, a partir da contribuição dos particulares. Certo é que, ao dialogar com a iniciativa privada, o gestor público obtém a ajuda que precisa para encontrar as soluções para os problemas que a população enfrenta, define o escopo do que é necessário desde a concepção do projeto, e obtém maior clareza sobre os contornos do serviço a ser prestado. É preciso também reconhecer que quanto mais próxima e transparente for a relação entre o privado que elabora os estudos e projetos e o ente público que é o titular do serviço a ser prestado pelo particular, menor será a assimetria de informação do próprio ente público acerca dos projetos gerados e maior sua contribuição para um contrato bem-sucedido no futuro. Para que isso aconteça, é fundamental superar o “direito administrativo do medo” [1] e compreender que a premissa das relações entre público e privado é a boa-fé para que se atinjam objetivos comuns, dentro de um padrão de institucionalidade.
2) Audiências públicas são importantes, mas num formato que de fato viabilize a discussão sobre os projetos e soluções, propiciando as mudanças necessárias. Muitas vezes as audiências públicas são utilizadas como instrumento meramente político-eleitoral por agentes do governo ou da oposição, e outras vezes são realizadas apenas para “cumprir tabela” sem que as discussões efetivamente ocorram. Órgãos de controle devem participar, assim como os stakeholders em geral, de modo que toda as ideias sejam postas à prova para que a concepção do projeto seja a mais próxima do ideal com a maior previsibilidade possível e menor necessidade de alterações futuras.
3) Garantia de independência técnica das agências reguladoras. Precisamos entrar na era da regulação efetiva, técnica e eficiente. Os projetos de infraestrutura ficam menos assertivos quando não há independência técnica na regulação setorial e isso geralmente ocorre como reflexo da pressão de agentes políticos e também de agentes privados sobre os reguladores. Por óbvio, a falta de independência não combina com relações jurídicas de longo prazo como ocorre com as concessões, cujos contratos podem vigorar por algumas décadas. Em contrapartida, quanto mais técnica for a atuação do regulador, mais previsíveis serão os atos que ele pratica; quanto mais previsível for esta atuação, menos riscos precisarão ser contingenciados no preço pelo contratado, impactando de forma virtuosa todo o ciclo da concessão, ou seja, desde o projeto até a efetiva prestação de serviços ao usuário.
4) Atuação mais contida e previsível do controlador. Não se questiona a importância dos órgãos de controle interno e externo para a boa condução dos contratos administrativos. Contudo, temos observado atualmente a absoluta falta de regramento e de certeza sobre os limites da competência dos órgãos controladores. Do mesmo modo, também não são claros os limites do exercício do próprio poder de controle, que muitas vezes é feito sem a oitiva do contratado e em decisões apressadas, com caráter cautelar, antes mesmo do aprofundamento da matéria, por meio do efetivo estabelecimento do contraditório. Esse tipo de atuação deletéria desbalanceia a relação contratual e afasta os investidores que se veem sem saída numa relação de longo prazo, que pode ser alterada a qualquer tempo por um terceiro cuja competência sequer é delimitada, muito menos em bases claras seguras.
5) Matriz de riscos equilibrada e clara. Tema central nos contratos de concessão é a definição de sua matriz de riscos. Quanto mais pensada e discutida for essa matriz, mais previsível será a relação jurídica contratual e as partes terão mais segurança para lidar com os riscos identificados. Os contratos de concessão, justamente por serem complexos, sempre tiveram essa premissa, mas a Lei 14.133/21, ao trazer expressamente essa necessidade para os contratos de grande vulto, deixa ainda mais clara a necessidade da prévia pactuação da distribuição de riscos, mediante alocação de responsabilidades pelos ônus financeiros que ocorrerem durante a relação jurídica entre as partes. Esta alocação definida já no início do contrato formaliza as condições de equilíbrio econômico-financeiro a que se submeterão as partes, trazendo mais previsibilidade e, por consequência, menos necessidade de contingenciamento de riscos que acabe por onerar o contrato desproporcionalmente.
6) Previsibilidade nas revisões dos regulamentos setoriais. Regulamentos setoriais são importantes porque conferem balizas objetivas para todos os envolvidos na relação contratual, mas justamente por isso suas alterações periódicas devem conversar com a garantia de não surpresa e de estabilidade que um contrato de longo prazo exige. Uma forma de endereçar o assunto é definir previamente os períodos e prazos em que serão feitas as revisões desses regulamentos com ampla participação dos interessados e do mercado. Essa simples medida possibilitaria maior estabilidade para os stakeholders ao longo do contrato.
7) Marcos legais seguros. No setor de infraestrutura, cujos diversos segmentos passaram por alterações importantes ao longo dos últimos anos, a consolidação dos marcos legais, com a substituição de regramentos obsoletos, acaba não só por conferir segurança, o que afeta a financiabilidade dos projetos, como também por estimular novos investimentos. Um bom exemplo se deu com a aprovação do Marco Legal do Saneamento, que deu ânimo para o segmento, impulsionando novos investimentos. Espere-se que o mesmo ocorra, por exemplo, nos segmentos de ferrovias, energia elétrica, gás e petróleo. O estabelecimento de regras simples, claras, oriundas de processo legislativo em que haja discussão com o setor privado certamente é uma forma de melhoria do ambiente de negócios.
8) Estrutura de garantias adequada para atrair novos investidores. Projeto bom é aquele financiável, com matriz de risco equilibrada e estrutura de garantia adequada. Esse é o tipo de projeto que o mercado deseja, mas muitas vezes a estrutura de garantias exigida pelo Poder concedente ou pelos financiadores (especialmente públicos) inviabiliza a entrada de novos players no setor, que certamente diversificariam o mercado diluindo o risco de concentração e gerando um ciclo virtuoso de competição. O grande receio, principalmente nos casos de concessões precedidas de obras públicas de grande vulto está no risco de performance. Embora a nova lei de licitações e contratos represente um estímulo legal à utilização do seguro-garantia para os contratos de grande vulto, e tenha previsto figuras interessantes como o step-in em caso de inexecução, o mercado ainda anseia pelo desenvolvimento de produtos mais eficientes que potencializem a financiabilidade dos projetos de infraestrutura com menor impacto no custo do projeto.
9) Sustentabilidade ambiental, impacto social e governança (ESG). O setor de infraestrutura não é indiferente ao chamado “capitalismo consciente”. O mercado já enxerga os pilares ESG como fundamentais para a perenidade dos investimentos. Portanto, projetos de infraestrutura que (1) nasçam com foco na preservação do meio ambiente, na proteção dos recursos naturais, mitigação de impactos ambientais, que (2) busquem o impacto positivo na sociedade e nas comunidades em que atuem e que (3) sejam produzidos mediante conduta corporativa ética com adoção de boas práticas de governança terão mais facilidade na captação de recursos no Brasil e no exterior.
De fato, embora simples e factíveis, tais premissas pressupõem uma efetiva mudança de paradigma na relação público-privada e nos contratos dela derivados. A nosso ver, são elas que poderão impulsionar a participação do mercado privado na elaboração de bons projetos, geradores de contratos de concessão que sejam seguros e eficazes para todos os envolvidos, culminando na melhoria da qualidade dos serviços públicos prestados à população, com tarifas adequadas.
[1] Expressão cunhada no título do recém-lançado livro de Rodrigo Valgas, “Direito Administrativo do Medo”, Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2020.