Ao longo dos últimos anos, diversos eventos contribuíram para a construção de um cenário econômico desfavorável aos projetos de infraestrutura, especialmente aqueles financeiramente dependentes da demanda dos usuários, como é o caso dos projetos de rodovias, ferrovias e aeroportos. Dentre essas causas, destacamos o momento de euforia vivenciado pelo setor, quando da formatação dos modelos econômico-financeiros de diversos projetos, a crise econômica experimentada pelo Brasil durante os anos de 2015/2016, já considerada uma das piores recessões da história do país, e, mais recentemente, a situação de absoluta anormalidade causada pela pandemia da Covid-19.

Neste contexto, a Lei federal nº 13.448/2017 (“Lei 13.448”) instituiu a relicitação como importante mecanismo consensual, alternativo à caducidade, para solucionar os contratos de concessão que não estivessem sendo cumpridos ou nos quais os contratados tenham demonstrado incapacidade em adimplir suas obrigações, sem solução de continuidade para os usuários. 

A relicitação consiste na devolução amigável do contrato de concessão ao Poder Concedente, objetivando evitar o processo de caducidade, extremamente moroso, sujeito a longas discussões judiciais, e danoso aos usuários, que sofrem com a prolongada má prestação dos serviços, conforme se depreende da exposição de motivos da MP 752/20161 – que originou a Lei 13.448. 

A celeridade, portanto, está no cerne e na própria motivação da relicitação, tanto assim que a conclusão do seu procedimento deveria ocorrer em até 24 meses, salvo prorrogações justificadas, nos termos do art.20, §1º e 2º da Lei 13.4482.

Neste sentido, a Lei 13.448 condicionou a relicitação à celebração de aditivo contratual que contenha, dentre outras previsões, a eleição da arbitragem para solução de questões que envolvam divergências quanto às indenizações devidas no âmbito dos referidos contratos – procedimento este notadamente mais célere do que o judicial.

Adicionalmente, a Lei 13.448 estabeleceu regramento específico a ser adotado pela concessionária durante o trâmite da relicitação, especialmente a suspensão das obrigações de investimento vincendas a partir da celebração do termo aditivo e as condições mínimas em que os serviços deverão continuar sendo prestados até a assinatura do novo contrato de parceria.

Entretanto, apesar da nítida preocupação com a adoção de solução célere, que permita a continuidade dos serviços aos usuários, e da grande adesão de projetos à relicitação3, a morosidade em sua conclusão tem colocado em xeque a efetividade deste instrumento.

A título de exemplo, o contrato de concessão da Rodovia BR-040/DF/GO/MG (“Concessão Via 040”), cujo pedido de devolução teve início em agosto de 2019, foi prorrogado – adicionalmente aos 24 meses originalmente previstos –, por mais 18 meses4. Já o aeroporto de São Gonçalo do Amarante, situado em Natal (“Aeroporto de São Gonçalo”), iniciado em março de 2020 e que deveria ser concluído até agosto de 2022, está estacionado no TCU (Tribunal de Contas da União) desde junho de 2021 e seu prazo foi prorrogado por um período adicional de 12 meses5.

No caso da Concessão Via 040, parte substancial da demora decorreu do atraso na celebração do aditivo ao contrato de concessão – condição legal para a relicitação – que ficou suspenso por meses, em razão de medida cautelar do TCU, que discordava da metodologia empregada pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) no cálculo da indenização. 

Neste ponto, importante mencionar que apesar de a Lei 13.448 determinar que a metodologia para cálculo das indenizações deverá ser definida em ato normativo da autoridade competente – no setor rodoviário é disciplinada pela Resolução ANTT nº 5.860/2019, que adotou o modelo de custo histórico contábil6 – a ministra relatora do caso no TCU entendeu que referida metodologia afastava os riscos assumidos pela concessionária.

A medida cautelar acabou sendo posteriormente revogada, mas o mérito segue pendente de conclusão. Além disso, o andamento da nova licitação está em fase inicial, pois seus estudos sequer foram finalizados7.

À semelhança do projeto de Concessão Via 040, a relicitação do aeroporto de São Gonçalo do Amarante também vem enfrentando barreiras ao seu prosseguimento. Neste caso, a relicitação havia sido suspensa por decisão do ministro relator Aroldo Cedraz, no âmbito do TCU, até que fosse apresentado o encontro de contas integral entre o poder concedente e a concessionária, sem que houvesse parcela ainda controversa. O procedimento foi posteriormente retomado, mas a decisão de mérito segue pendente, de modo que não há certeza quanto à possibilidade de realização da nova licitação sem a prévia definição do valor total da indenização.

Nota-se, portanto, que o prazo originalmente previsto na legislação está longe de demonstrar-se viável, ao menos por ora.

Na tentativa de destravar os procedimentos de relicitação em andamento, o governo editou a chamada “MP do Voo Simples”, a qual deu origem à Lei 14.368, de 14 de junho deste ano, e passou a estabelecer que, no caso das relicitações, eventuais controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis, que estejam submetidas à arbitragem, não impedirão o início do novo contrato de parceria. 

É verdade que instrumentos inovadores – como a relicitação – possuem um período natural de amadurecimento e evolução, o que tem especial impacto sobre os primeiros projetos. Resta saber, porém, se a relicitação terá êxito em superar estas barreiras e se apresentar de fato como uma solução consensual célere ou se acabará soterrada em seu próprio procedimento, seja por ineficiência da Administração Pública, seja pela morosidade dos órgãos de controle.

Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_pareceres_substitutivos_votos;jsessionid=node01rvxuls9t6wnjelgd3w4rfwro58548181.node0?idProposicao=2118464. Acesso em: 22 de março 2022.
A Lei 13.448/17 originalmente previa a possibilidade de prorrogação deste prazo sem qualquer limitação, no §2º do artigo 20, o qual foi alterado pela Lei 14.368/22, que passou a determinar o prazo de 24 meses como limite para as prorrogações: § 2º O prazo de que trata o § 1º deste artigo poderá ser prorrogado por sucessivas vezes, desde que o total dos períodos de prorrogação não ultrapasse 24 meses, mediante deliberação do CPPI (Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos) da Presidência da República.
Atualmente já existem nove requerimentos para adoção da relicitação, dos quais cinco se referem a projetos rodoviários, três aeroportuários e um ferroviário.
Disponível em: https://portal.antt.gov.br/documents/359170/2393246/3%C2%BA+TA+Via040+assinado.pdf/d214c0b1-f364-96fd-28d3-3b2a3941725e?t=1645450385680. Acesso em: 20 de março de 2022.
Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-cppi-n-231-de-2-de-junho-de-2022-407811923. Acesso em: 4 de agosto de 2022.
Esta metodologia é criticada por transparecer a ideia de certa ineficiência, pois o prestador de serviço pode ser estimulado a realizar aquisições de forma imprudente, desvantajosas, cujo efeito recairá sobre eventual indenização da parcela não amortizada e/ou depreciada dos bens reversíveis. Apesar disso, ela é considerada a metodologia mais objetiva, pois reflete a realidade, ou seja, o investimento efetivamente realizado pela concessionária (ANA – Agência Reguladora de Águas e Saneamento Básico. Nota Técnica nº 3/2021/COCON/SEC, Documento nº 02500.040103/2021-30. Disponível em: https://participacao-social.ana.gov.br/api/files/Nota_Tecnica-1630094470594.pdf. Acesso em 16 de março de 2022.
Disponível em: https://portal.ppi.gov.br/br-040-df-go-mg-ratificacao-da-qualificacao-ad-referendum. Acesso em: 07 de junho de 2022.

As discussões sobre os desafios e oportunidades do setor de saneamento vêm ocupando os holofotes e debates de infraestrutura, fruto do processo de aprovação da Lei no 14.026/20, conhecida como novo marco Legal do Saneamento (novo marco). Apesar da intensificação deste debate, com a inclusão do tema nas principais pautas do mercado, o setor ainda possui um longo caminho a percorrer para consolidar sua agenda regulatória, o que pode ser facilmente compreendido, considerando a profusão de agências reguladoras e regulamentos atualmente existentes no Brasil.

Um tema que parece ser menos debatido, a despeito de sua relevância para a estabilidade dos projetos, diz respeito à governança interfederativa nos casos de prestação dos serviços de saneamento em região metropolitana, microrregião e aglomeração urbana. Este tema assume relevo ainda maior diante do incentivo que o novo marco conferiu à prestação regionalizada, com a instituição das unidades regionais e blocos de referência [1].

Características inerentes aos serviços de saneamento — tais como o compartilhamento das bacias hidrográficas, interdependência dos sistemas e inviabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços por parte dos municípios isoladamente — já haviam ensejado atuação integrada entre municípios e também destes com os Estados, por meio das diversas formas de prestação regionalizada. Contudo, o novo marco foi um passo além e elegeu a regionalização como um dos principais instrumentos de gestão para o alcance da universalização, ao condicionar a alocação de recursos públicos federais e o acesso a financiamentos com recursos da União à adesão pelos titulares dos serviços de saneamento à estrutura de governança correspondente [2], nos casos de unidade regional de saneamento básico, blocos de referência e gestão associada [3].

Assim, embora a adesão aos blocos regionais pelos titulares do serviço público não seja compulsória, ao contrário do que ocorre em regiões metropolitanas, pode-se dizer que há quase uma indução para que isso ocorra, diante do grande desincentivo financeiro para os municípios que por qualquer motivo deixem de integrá-los. Daí decorre o ponto de preocupação apontado pelo presente artigo: a ausência de parâmetros que regulem as condições de governança dos colegiados interfederativos.

As discussões acerca das regras de governança dos colegiados interfederativos, apesar de não serem novas, parecem não estar próximas de uma solução definitiva. Na emblemática decisão proferida pelo STF na ADI 1842 — que tratava da constitucionalidade da lei complementar que instituía a região metropolitana do Rio de Janeiro e a microrregião dos Lagos — esta questão foi abordada de forma superficial. O acórdão estabeleceu que a participação dos entes federados nas instâncias de governança não precisaria ser paritária, mas deveria ser estruturada de modo a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente [4].

O Estatuto da Metrópole (Lei no 13.089/15), que representou avanço sobre a matéria ao estabelecer princípios, diretrizes gerais e estrutura básica da governança interferderativa, também não fixou parâmetros para nortear as discussões acerca da composição e quóruns para deliberações dos entes integrantes dessa estrutura de governança. E tal lacuna tem dado ensejo a diversas discussões judiciais, a exemplo do que ocorreu nas ADIs 6573 e 6911.

Referidas ADIs questionam dispositivos da Lei Complementar nº 50/2019 do Estado de Alagoas [5], especialmente os artigos 8º e 14º que regulam, respectivamente, a composição e percentuais de participação das entidades federadas nas instâncias deliberativa e executiva da Região Metropolitana de Maceió (RMM), sob alegação de concentração de poder nas mãos do Estado de Alagoas. A composição da instância deliberativa da RMM é distribuída da seguinte forma: 40% para o Estado de Alagoas, 40% para o conjunto dos 13 municípios, 15% para a Assembleia Legislativa e 5% para a sociedade civil. Já a instância executiva é composta pelo Estado de Alagoas com 40% dos votos, pelo conjunto dos 13 municípios com 40% dos votos e pela Assembleia Legislativa com 20% dos votos [6].

Vale citar também a ADI 6339, por meio da qual são questionados dispositivos da Lei Complementar nº 48/19 do Estado da Bahia, que institui microrregiões de saneamento básico no estado. Alguns dos dispositivos questionados tratam justamente do percentual de participação atribuído ao Governo do Estado (50%), por entender que, por sua preponderância, este percentual de participação feriria a autonomia municipal — os outros 50% foram atribuídos ao conjunto de municípios.

As normas estaduais para criação dos blocos regionais também não são uniformes no endereçamento da governança interfederativa. Citamos, a título de exemplo, o Projeto de Lei nº 2.884/21 do Estado de Minas Gerais, que definiu de forma detalhada a composição e percentual de participação atribuível a cada um dos membros das estruturas de governança. A proposta contida no referido projeto de lei prevê que a instância colegiada deliberativa será composta pelos municípios, que deterão em conjunto 75% dos votos, cabendo ao Estado de Minas Gerais 15%  dos votos e ao Comitê de Bacias Hidrográficas 10% dos votos, com as decisões deliberadas por maioria absoluta. Já a instância executiva, composta por representantes dos municípios, será exercida por meio de gestão associada, mediante consórcio ou convênio de cooperação, nos termos do artigo 241 da Constituição Federal.

A Lei nº 17.383/21 do Estado de São Paulo foi omissa neste aspecto, limitando-se a indicar as instâncias de governança que comporão sua estrutura básica, em linha com o Estatuto da Metrópole, e deixando as demais condições, incluindo composição e percentual de participação, para definição no âmbito das respectivas unidades regionais.

Em síntese, o esforço e os recursos dos investidores, sejam estes públicos ou privados, devem estar concentrados na melhoria da prestação dos serviços públicos e na ampliação da cobertura de água e esgoto para a sociedade, para que se alcance a universalização, e sem uma discussão séria que enderece as questões de governança interfederativa continuaremos imersos em batalhas judiciais, que demandam tempo e recursos a perder de vista, gerando insegurança para todos.

[1] Vide artigo3º, inciso VI, alíneas “b” e “c” da Lei 11.445/07, com as alterações promovidas pela Lei 14.026/20.

[2] A exemplo da Caixa Econômica Federal, um dos grandes financiadores do setor.

[3] Ver artigo 50, inciso VIII da Lei 11.445/07, com as alterações promovidas pela Lei 14.026/20.

[4]Destacamos trecho da ADI 1842/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno: “O parâmetro para aferição da constitucionalidade reside no respeito à divisão de responsabilidades entre municípios e estado. É necessário evitar que o poder decisório e o poder concedente se concentrem nas mãos de um único ente para preservação do autogoverno e da autoadministração dos municípios.

Reconhecimento do poder concedente e da titularidade do serviço ao colegiado formado pelos municípios e pelo estado federado. A participação dos entes nesse colegiado não necessita ser paritária, desde que apta a prevenir a concentração do poder decisório no âmbito de um único ente. A participação de cada Município e do Estado deve ser estipulada em cada região metropolitana de acordo com suas particularidades, sem que se permita que um ente tenha predomínio absoluto

[5] A Lei Complementar dispõe sobre o sistema gestor metropolitano da Região Metropolitana de Maceió (RMM).

[6] No caso da ADI 6573 houve manifestação da Procuradoria Geral da República, em 25/02/21, opinando pela procedência parcial da ação por entender que “O peso decisório conjunto de treze Municípios juntos não pode ser menor do que o do estado-membro. Contudo, da maneira em que positivado na Lei Complementar 50/2019, o Estado de Alagoas tem predomínio absoluto sobre as decisões da região metropolitana.